‘Espiral’: cinema gaúcho transforma memória industrial em drama arrebatador

A narrativa alterna entre 1982, 1994, 2000 e 2022, compondo um mosaico de encontros familiares que, embora cotidianos, carregam profundidade e significado.

Por: Mariana Mourão
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Bactéria Filmes

O cinema brasileiro ganha um novo e poderoso capítulo com “Espiral”, longa-metragem de Leonardo Peixoto que estreia em outubro trazendo à tela uma narrativa marcada pela força da memória, pelas transformações econômicas e pelo peso do tempo que molda famílias e cidades.

Ambientado em Novo Hamburgo (RS), o filme entrelaça a ascensão e o declínio da indústria calçadista à trajetória íntima de uma família local, revelando como o coletivo e o individual se espelham em camadas de afeto, dor e resistência. Logo em sua abertura, com o jogral que afirma que todos na cidade são atravessados pelo calçado — “quem já estava aqui e quem chega depois” —, o filme estabelece sua proposta de olhar para a vida em formato de espiral, e não de linha reta. A narrativa alterna entre 1982, 1994, 2000 e 2022, compondo um mosaico de encontros familiares que, embora cotidianos, carregam profundidade e significado.


“Espiral” se destaca por suas potencialidades artísticas e simbólicas. A primeira delas é a construção estética do tempo, que rompe a linearidade e propõe ao espectador uma experiência de memória e pertencimento, como se cada reunião de família fosse uma dobra no tempo. A segunda está na dimensão histórica, que dá corpo à transição de Novo Hamburgo, da “Manchester brasileira” dos anos 1980 ao impacto devastador da concorrência internacional nos anos 1990, refletindo as dores coletivas de uma cidade que viveu um ciclo de abundância e queda. Por fim, a terceira reside na sensibilidade humana que pulsa nas relações entre pais, filhos e amigos, revelando como a vida íntima é inseparável das transformações sociais.

A força do elenco e da equipe técnica potencializa essa visão. A fotografia de Alexandre Berra valoriza o contraste entre o brilho do auge econômico e a melancolia da crise, enquanto a direção de arte de Pauliana Becker recria ambientes impregnados de memórias. A produção de Daniela Israel e a união de quatro produtoras gaúchas, mesmo em um cenário adverso para a cultura, demonstram a resiliência de um cinema que insiste em existir e contar suas próprias histórias. Acompanhando o longa, o curta “De Volta ao Jogo”, também de Peixoto, aposta no humor e na leveza para falar de amor em tempos de crise, reforçando a diversidade criativa do audiovisual regional.

“Espiral” emociona, provoca e homenageia não apenas uma cidade, mas todo um Brasil que se reinventa entre perdas e conquistas. É um cinema de pertencimento, que olha para trás sem medo de projetar o futuro, transformando a memória industrial e afetiva em drama arrebatador e universal.

Vá ao cinema!