“Seu Cavalcanti” transforma memória familiar em cinema universal
Maeve Jinkings, em cena ao lado de Seu Cavalcanti, traz uma energia improvisada e generosa
Por: Mariana Mourão
Foto: Divulgação


Há filmes que nascem de uma ideia e outros que se constroem ao longo da vida. “Seu Cavalcanti”, segundo longa-metragem de Leonardo Lacca, pertence a essa segunda categoria: é fruto de quase 20 anos de registros, experimentações e encontros, em que a fronteira entre realidade e invenção se dissolve para revelar algo maior que a soma de seus elementos.
O protagonista, Severino Cavalcanti, avô do diretor, é um homem de mais de 90 anos que, após uma grande contrariedade, luta para reconquistar independência e prestígio. No entanto, mais do que a trajetória individual de um patriarca, o filme se desdobra como um ensaio sobre tempo, memória e afeto — e a maneira como o cinema pode transfigurar a intimidade em arte de alcance coletivo.
Lacca assume o risco e a liberdade da docuficção, recusando rótulos fáceis de documentário ou ficção. O resultado é um mosaico vibrante, que mistura imagens caseiras, encenações, improvisos e até efeitos especiais, sempre com um olhar carinhoso e crítico sobre a figura central. A ausência do avô, falecido em 2016, não fragiliza a narrativa: pelo contrário, se torna motor de invenção, integrando-se organicamente ao tecido do filme.
A força do longa está tanto no afeto que transborda das imagens quanto na sofisticação formal de sua realização. A montagem de Luiz e Ricardo Pretti é um trabalho paciente e preciso, capaz de costurar décadas de material em uma narrativa fluida, que nunca perde ritmo ou frescor. A fotografia de Pedro Sotero e a trilha de Tomaz Alves Souza acrescentam camadas de sensibilidade, conferindo ao filme um acabamento visual e sonoro à altura de sua ousadia criativa.
As participações especiais também ampliam a dimensão da obra. Maeve Jinkings, em cena ao lado de Seu Cavalcanti, traz uma energia improvisada e generosa, enquanto Tânia Maria imprime sua espontaneidade característica, criando momentos de pura vitalidade cinematográfica.
Mas é, sobretudo, na presença — e até na ausência — de Seu Cavalcanti que o filme encontra sua maior potência. Entre humor, fragilidade e dignidade, ele se revela não apenas como personagem, mas como símbolo de resistência e reinvenção, lembrando que envelhecer também pode ser um ato político.
Com 78 minutos que condensam duas décadas de filmagens, “Seu Cavalcanti” reafirma o talento de Leonardo Lacca em transitar entre intimidade e universalidade. Se em Permanência ele explorava as nuances do reencontro amoroso, aqui ele transforma a própria memória familiar em uma experiência coletiva, capaz de tocar qualquer espectador.
O longa é uma celebração do cinema como espaço de diálogo entre gerações, como lugar onde a vida, mesmo finita, pode ganhar permanência.
“Seu Cavalcanti” é um filme raro: ao mesmo tempo profundamente pessoal e absolutamente universal.
Confira!